CAPÍTULO V
§ 1.° Olhar retrospectivo sobre o
desenvolvimento histórico de cada arte.
A arte - já o vimos - nasce ao mesmo tempo que o homem; encontra-se
em quase todos os seus atos e pensamentos. É para ele tão natural e
necessária, que lhe regula a disposição das ideias e determina a
cadência da linguagem. Numa época em que a única indústria
consiste em talhar os silex em forma de flecha, de faca e de clava,
já possui o homem uma arte, que se manifesta, indiretamente, pela
própria maneira por que ele talha esses sílex, pela forma que dá a
essas armas; diretamente, pela confecção de diversos ornamentos e,
sobretudo, por desenhos já bastante completos para que possamos
ainda hoje reconhecer os respectivos modelos. A música não lhe é
mais estranha que as artes do desenho. Atestam-no. os instrumentos
achados nas cavernas.
Quanto à dança e à poesia, só se podem fazer conjeturas; estas,
porém, adquirem suficiente probabilidade, quando se atenta para o
fato de que estas duas formas da arte sempre existiram, em vários
graus, entre as populações selvagens, nas quais as artes do desenho
não passavam do estado puramente rudimentar, povos esses que nunca
foram privilegiados, como a raça branca o foi desde o princípio.
Esta arte espontânea, que não é mais que a manifestação
inconsciente de uma aptidão natural e inata, ainda a encontramos na
aurora dos tempos históricos. Os mais antigos hinos védicos, pelos
quais os pastores árias, acampados nas margens do Indo, invocaram as
divindades do céu luminoso em seu socorro, contra os demônios da
noite, têm por caráter a expressão dos sentimentos de medo ou de
fé. E mais 'notável e tal expressão por serem esses poemas
coletivos despidos de qualquer propósito artístico, intencional
procurado. Neles não há estudo nem esforço. A poesia destes hinos
resulta simplesmente da sinceridade da emoção que os inspira
Absolutamente subjetivos pelo caráter desses sentimentos, são eles
muitas vezes objetivos pela forma sob a qual se expressam. A
descrição é a forma que convém perfeitamente a esses poemas, em
que se cuida de fenômenos astronômicos ou meteorológicos. Porém,
essas descrições se transformam espontaneamente em dramas animados
e vivos, pelo simples fato de que, para os Arias, tais fenômenos são
manifestações de vontades contrárias ou favoráveis. Para eles, o
céu e a terra, a luz, o sol, a lua, os ventos, a aurora, a noite, a
nuvem, o fogo, as libações, o sacrifício e o próprio hino são
divindades, isto é, seres voluntários e ativos, cujo poder,
superior ao do homem e livre de qualquer lei, o ameaça com todos os
males ou lhe assegura todos os bens, conforme ele consiga, ou não,
conquistar-lhes a proteção ou desarmar-lhes a hostilidade
Destas concepções antropomórficas nascem inúmeras lendas, cujo
sentido mais tarde se vai progressivamente dissipando. Os dramas
celestes acabam por transformar-se em cantos heróicos, que se
desvirtuam de geração em geração, chegando a produzir as grandes
epopéias antigas.
Estas produções coletivas da raça trazem naturalmente os seus
caracteres e exprimem os seus sentimentos. Ainda é arte impessoal,
no sentido de não pertencer a nenhum poeta particular; é arte
nacional.
Depois disto, nasce uma nova arte, ou melhor, uma nova forma de arte,
que é a dos tempos modernos. A arte tornou-se consciente de si
própria e, por este caráter, sobretudo, se distingue da arte
anterior. A personalidade do artista revela-se gradativamente e
exagera-se, por vezes , até a própria negação da arte, até a
vaidade fatigante, que faz substituir a expressão sincera e
espontânea dos sentimentos pelas interesseiras preocupações do
poeta avido de êxito.
A arte ingênua e espontânea dos
primeiros tempos acaba, assim, por ceder lugar a uma arte refletida e
intencional, que teme expandir-se, porque sua emoção é superficial
ou fictícia, e que, de decadência em decadência, se torna arte
acadêmica. Mas a poesia não poderia perecer, e, para ressurgir,
basta-lhe revigorar-se na verdade. Assim, aos periodos de depressão
sucedem esplêndidos renascimentos. Depois da poesia dos Luce de
Lancival e dos Delille, vem a dos Musset e dos Hugo.
A grande poesia pessoal origina-se do desenvolvimento o espírito de
análise, o que não a impede de sucumbir, uma vez por outra. Desde
que o homem se põe a examinar-se introspectivamente, empenha-se em
profundar cada vez mais esse exame, e a curiosidade acaba por
prevalecer sobre interesse artístico. Por efeito do espiritualismo
exclusivo das doutrinas pseudofilosóficas, que se adestram em
separar os fenômenos morais de suas causas fisiológicas, e a
isolá-las num mundo imaginário, as teorias psicológicas invadem
gradativamente o domínio da poesia, reduzindo, afinal, suas criações
a fantasmas inanimados, a puras abstrações, que não podem ter
realidade senão nas esferas etéreas habitadas pelos metafísicos.
Esta exageração psicológica não poderia durar muito tempo. A
rigor, pode satisfazer a uma sociedade requintada, acostumada a viver
numa atmosfera artificial, ávida de sutilezas aristocráticas, como
era a do fim do século XVII Mas, desde o momento em que a
literatura, em vez de comportar-se nos limites da classe que reflete,
pretende projetar-se mais amplamente, e inevitável a sua
transformação, a fim de pôr-se em conformidade com os sentimentos
e o gosto de seu novo público.E o que realmente acontece, a despeito
dos esforços dos fetichistas do passado, que, a todo transe, querem
retê-la pelos vinculos de uma tradição já ininteligível para as
massas
○ que estas requerem é a sinceridade e a vida na
arte; a vida verdadeira e real. É esta necessidade que explica o
prodigioso desenvolvimento do teatro em nossos dias. A tal respeito,
não nos devemos iludir com os nomes de Corneille, Racine e Molière.
Só em nossos dias é que o teatro penetrou nos hábitos do público.
O mes mo se pode dizer do romance.
Estes dois gêneros sofrem
uma transformacão quese acentua, dia a dia, `no mesmo sentido, isto
é, no sentido popular.
O romance e o teatro
aristocrático do século XVII foram
progressivamente substituídos pelo romance e pelo teatro burguês, à
medida que o movimento social e político se acentuava nesse sentido.
Chegamos hoje ao drama e ao romance verdadeiramente humanos,
compreendendo toda a sociedade ○ campo tornou-se tão vasto quanto
a própria humanidade. Igualmente, o processo se transforma.
descrição e a sábia anatomia cedem lugar a ação. E pela
sequência das cenas e dos atos que se pintam os caracteres, tanto na
poesia como na vida real. Surge uma arte nova, que se eleva por entre
o clamor de alarma dos amantes da bela literatura.
Mas, desde já, é fácil ver que seu futuro está garantido, e que a
tirania da convenção acadêmica vai receber mais um profundo golpe.
A dança começou por ser simplesmente o efeito espontâneo da
necessidade de movimento, que resulta de certos impulsos d'alma.
Tornou-se uma arte, por efeito do ritmo, que, regulando e cadenciando
os movimentos a fez capaz de exprimir um número maior de
sentimentos; e, por efeito da imitação, que lhe favoreceu traduzir
por gestos e atitudes as principais ocupações da vida. Existiram
danças da guerra, da religião, da colheita, da vindima, etc.
Chegou-se mesmo a imitar o movimento dos astros e as mais importantes
cenas das grandes lendas cósmicas e heróicas. Assim é que a dança
espontânea dos primeiros tempos acabou por tornar-se um espetáculo,
tanto no teatro grego quanto na ópera moderna.
A música provém de uma fonte análoga, Seu primeiro embrião
está no grito espontâneo de alegria ou de dor, de amor ou de
cólera, fecundado e diversificado pelo ritmo, submetido às regras
das combinagões e harmonias aceitas pelo ouvido, Seu domínio
alarga-se à medida que a observação aprende a reconhecer as
relações que existem entre os sons e as emoções da alma humana ○
canto primitivo expressão de um sentimento único e definido, e
portanto, restrito e monótono, desenvolve-se até dar origem à
melodia moderna com a variedade e a agilidade das intonações, que
fazem a alma passar por uma série de mutações inesperadas
Depois,
à medida que a análise psicológica se adianta, e que o ouvido se
habitua à diversidade e à multiplicidade dos sons, a harmonia se
reúne à melodia, adicionando os efeitos da simultaneidade dos
timbres e das notas aos efeitos da sucessão. Enfim, chega-se a somar
a simultaneidade dos diversos timbres à das notas diferentes, a tal
ponto, que se pode indagar qual será o limite de compreensão do
ouvido.
As artes da vista seguem uma progressão semelhante
A
escultura, que cria diretamente as formas completas, com suas três
dimensões, parece ter sido a primeira, mesmo antes.do desenho. As
armas, os instrumentos, os adornos de pedra lascada já são
escultura O homem das cavernas rebusca a elegância na forma, a
variedade no aspecto, e este rebuscamento é tão espontâneo, que
será difícil atribui-lo àa imitação. Só mais tarde a imitação
intervém. Então, põe-se ○ homem a reproduzir a forma dos
vegetais, dos animais e do próprio homem. Estas imitações, mais ou
menos grosseiras a princípio, completam-se pouco` a pouco, à medida
que os utensilios se aperfeiçoam e que a vista adquire mais
experiência. Os mais antigos monumentos, que nos ficaram da
escultura egípcia e assíria, já são notáveis pela escolha
inteligente dos traços característicos talvez, mais do que os das
épocas posteriores. Os gregos, apaixonados pela beleza das formas
vivas e, principalmente, pela forma humana, não se cansam de
reproduzi-las sob todos os seus aspectos. Uns, não `tendo outra
finalidade além da própria imitação, copiam-nas com fidelidade e
exatidão tais, que demonstram não ser o realismo tão moderno como
se imagina; outros, procurando na escultura a interpretação de suas
lendas religiosas ou heróicas, são logicamente levados ao tipo,
como os poetas da epopéia e do drama, não em virtude de uma teoria
preconcebida, como ensinam os metafísicos, porém simplesmente.
porque seu objetivo é, sobretudo, representar a qualidade ou o
atributo especial que personifica a divindade, cuja estátua
executam.
Os deuses de Fidias e de Policleto são majestosos e impassíveis;
mas esta imóvel serenidade do rosto e da atitude não impede que os
corpos tenham vida. Os corpos palpitam, o sangue lhes corre nas veias
e todas as aparências da vida estão representadas de maneira tão
prodigiosa, que se tem a tentação de apalpar para convencer-se de
que são de mármore. A geração que sucede a estes grandes artistas
distingue-se por um acentuado esforço no sentido de exprimir os
sentimentos humanos; como na tragédia, essa tendência progride
rapidamente. Pretendeu-se ver nisso um esboço de decadência. Cremos
que aí está um erro, que se explica pela obstinação com que
alguns querem julgar tudo sob o ponto de vista do ideal platônico
A
escultura moderna, certamente, não é comparável à da Grécia,
quanto à perfeição da forma. Há para isso motivos, que mais tarde
explicaremos Porém ela é superior sob outro aspecto; a expressão
do caráter e a intensidade da vida moral,
É impossível
remontar às origens da pintura com alguma segurança. Entretanto, o
próprio entalhe de certos objetos dos tempos pré-históricos prova
suficientemente que os homens eram. desde então, sensíveis à
diversidade do colorido e dos jogos de luz. prazer que os mais
selvagens agregados sentem em contemplar certas cores, o costume que
têm de praticar a tatuagem e tingir a pele, os dentes e os cabelos,
demonstram claramente que este gosto é instintivo. Portanto,
podemos, sem temeridade, admitir que a pintura não seja muito menos
antiga que a escultura, se bem que, por motivos fáceis de conceber,
não nos tenha ficado nenhum monumento igualmente antigo. A pintura
repousa num conjunto de convenções de tal modo complexas, e seus
processos pressupõem tal multiplicidade de conhecimentos, que é
naturalíssimo não ter ela atingido, senão muito mais tarde, um
grau de relativa perfeição. Temos boas razões para crer que, nos
belos tempos da Grécia, a pintura não passasse de escultura
pintada.
Hoje, porém, a situação é outra. A pintura, que é apenas uma
convenção, tornou-se a mais apta de todas as artes para lutar
contra a realidade. Esta criação, saída gota a gota do cérebro do
homem, chegou a ser o mais perfeito espelho das coisas e o meio mais
completo e expressivo de traduzir as impressões do homem em face dos
espetáculos da natureza Toda a sua história se explica por este
duplo caráter: ns, atendendo somente ao seu poder de imitação e,
arrebatados por seus maravilhosos efeitos, limitaram seu papel à
tradução literal dos espetáculos visíveis, concluindo por
suprimir da arte a emoção, a poesia, isto é, o próprio homem,
para não deixar subsistir senão o ofício; outros, ao contrário,
fascinados pelo seu poder de expressão, chegaram a considerar esta
arte uma espécie de suplemento à linguagem escrita ou falada, e
tentaram impor-lhe as simplificações, as abreviações e as
convenções que ousoe a necessidade sempre acabam por introduzir em
toda espécie de linguagem.
Grandes pintores são aqueles que têm podido resistir a essas duas
correntes e conciliar numa suprema unidade este duplo caráter da
pintura Atualmente, após diversas oscilações, o público, fatigado
das simplificações da escola acadêmica e das fantasias, por vezes,
artificiais da escola romântica recai na procura do verdadeiro; tem
sede de sinceridade. Encontramos na pintura de nossos dias os mesmos
indícios de luta, que tínhamos já assinalado na poesia, e que
estão no fundo do pensamento contemporâneo. Em toda a parte e em
todas as coisas, este pensamento persiste e exige a verdade. E a
pintura, a fim de obedecer a esta tendência, mergulha mais fundo que
nunca, no estudo da natureza e da realidade para ai encontrar novos e
mais fortes meios de expressão, mais de acordo com as exigências do
espírito moderno
A arquitetura tornou-se uma arte, mas principiou por ser outra coisa.
O primeiro homem, que teve a idéia de cavar um abrigo na terra ou de
construir para si uma cabana, por certo não sonhou com a criação
de uma obra artistica. Obedeceu a uma preocupacão, com a qual nada
tinha que ver a estética, tal como o primeiro que talhou um machado
de silex. A arquitetura nasceu, pois, de uma necessidade meramente
física. Mas, pelo simples fato de uma cabana oferecer à vista um
conjunto de linhas e superficies, era de prever-se que sentimento
inato da arte acabasse por manifestar suas preferências, dando às
linhas e às superfícies disposições mais agradáveis à vista.
Tais preferências tiveram naturais oportunidades para revelar-se e
fixar-se, quando da construção das habitações destinadas aos
deuses e aos potentados; os templos e os palácios, para ser dignos
de seus habitantes, deviam distinguir-se dos abrigos reservados ao
vulgo, por sua grandeza, por sua magnificência e pelo caráter de
sua decoração. i está o germe de tudo mais. A construção e a
decoração, subordinadas à natureza dos materiais e ao destino `dos
edifícios, produziram espontaneamente os vários gêneros de
arquitetura, considerados em suas linhas gerais. Em seguida, por um
lógico trabalho de concentração e assimilação, analogo ao que se
nota, na formação das grandes lendas e epopéias antigas, cada qual
destes géneros se completou com tudo que pudesse contribuir para a
expressão do pensamento, que se pode encarar como constituindo o
centro e c núcleo de toda a combinação. Como na epopéia ou na
música, esta combinação, primitivamente, não é mais que uma
harmonia sucessiva de linhas mais ou menos expressivas, de idéias ou
de sentimentos, corr a diferença apenas de que os sinais que se
reunem e combinam na epopéia e na musica são palavras e notas, ao
passo que, na arquitetura, são linhas formas e cores, exatamente
como na escultura e na pintura Poderá dizer-se, mesmo, que a
arquitetura não passe de uma extensão da escultura. Esta analogia
torna-se patente diante dos templos subterrâneos da índia, cavados
inteiramente num só bloco de pedra. Há, porém, esta diferença: a
escultura imita muito mais ordinariamente as formas fornecidas pela
natureza, ao passo que o conjunto do modelo arquitetônico só existe
no pensamento do arquiteto.
Estando, assim, determinados os caracteres mais ostensivos de cada
uma das artes, podemos finalmente abordar a definição geral da
arte.